Lembro da primeira vez que a vi.

Lá estava eu, com 18 anos apenas, era uma caloura assustada e ingênua, na primeira aula daquela mulher. No primeiro ano de Comunicação, aprendiamos, basicamente, humanidades. E aquela mulher tentaria mostrar um pouco de Sociologia às quarta-feiras, em aulas dobradas.

A primeira vez que a vi, fiquei curiosa. Professora Lúcia Montezuma: nome de minha tia mais doce, sobrenome do ditador asteca que sucumbiu ao espanhol Cortés. Que medo! Tão imponente, logo em sua primeira aula! Exaltava-se. Os braços agitavam-se como se estivesse sofrendo espasmos, a voz se alterava a todo instante. Enquanto falava, vinha subindo os degraus da sala de tablados. A cada passo impunha o seu gosto em sala, pisando com força no assoalho de madeira entre o pequeno corredor de carteiras: "Não gosto de óculos escuros na minha aula"! BAM! "Não precisa beijar todo mundo quando chegar atrasado, eu tenho certeza que vcs não são políticos!" BAM! "Não gosto de ti-ti-ti, intervalo serve pra isso!" BAM!

Eis que o corredor acaba na única fileira de carteiras que ia de parede a parede, e ela acaba o seu discurso. Fica paralizada. Encara com aqueles olhos azuis a aluna solitária que ali se sentava - eu.

Lembro-me perfeitamente bem desse momento. Posso descrevê-lo com perfeição. Não esqueço aqueles olhos azuis para mim arregalados, encravados numa face até que bonachona, não fosse o terror que deles emanava. A pele rosada, o cabelo muito vermelho, o conjunto azul que ela vestia e as sandálias pretas que ela calçava. Ela suava. Muito.

Ar? Estava escasso. Havia um fio de ar que corria condicionadamente dentro de mim, afim de me manter (ainda) viva. Medo, muito medo. O que eu fiz de errado? Logo eu? Na escola todos os professores gostavam de mim! Eu sou boa aluna, sempre fui, que foi que eu fiz?

Tentando quebrar o clima tenso, encolhi os antebraços e levantei os braços, como um ladrão acanhado se rendendo à polícia. Nem imagino o que se passou na minha cabeça naquele instante, mas lembro que após piscar duas vezes os olhos, ela perguntou, alto o suficiente pra que todos escutassem:

- Qual o seu nome?

E eu, gaguejando, respondi:

- M-M-Maria R-R-Ren-nata...

Ela repetiu, pausadamente:

- Maria Renata. Renata. Renatinha.

Eu juro que senti os seus olhos crispando naquele momento, numa espécie de prazer masoquista. E a minha gaguejada deve ter sido um troféu, no estilo "parabéns, vc acaba de assustar mais um aluno!"

Enfim. Amaldiçoaria aquele dia. Acreditava de pés juntos que ela me odiava pelo meu ato impensado durante a aula. Era um inferno. Renatinha pra lá, Renatinha pra cá. Suava frio ao cruzar com ela no corredor!

Se eu ria, logo ouvia um "compartilhe o motivo do seu riso com a sala, Renatinha!". Na leitura da apostila, "Cadê a entonação, Renatinha?". E no meio da explicação também: "A TV é um dos maiores meios de coerção social, eu tenho certeza que o pai da Renatinha acredita em 95% do que ele vê no Jornal Nacional!".

O ano letivo se passou e deu que ela não arrancou um pedaço meu, surpreendentemente. Ao longo de 2001, aquele espanto todo foi se transformando em admiração, e como eu admiro Lúcia Montezuma! Que mulher inteligente! Dera eu tivesse metade daquele cérebro. Quando nos encontramos nos corredores da universidade, nos cumprimentamos, ela ainda me chama de Renatinha, mas hoje com muito mais carinho que ironia: "Renatinha e seus óculos intelectuais!"

Porém, dentre toda a santíssima trindade Marx-Dürkheim-Weber que ela tanto explicava nas aulas, a maior lição que ela me deixou foi a frase que encabeça este post: as noites são enluaradas.

E eu sempre me lembrarei de Dona Lúcia quando forem 00:46 de uma sexta-feira e eu estiver correndo com qualquer trabalho de faculdade, ou mesmo com um job queimando o deadline: as noites são enluaradas.

Que sono.

[ Ao som de "Namami Nanda-Nandana" | Kula Shaker ]